Parecer Coren–BA N⁰ 007/2017

Assunto: Aspectos Legais da Alta a Pedido.

20.06.2017

Assunto: Aspectos Legais da Alta a Pedido.

 

1. O fato:

 “Enfermeira solicita informações sobre respaldo legal da Enfermagem no processo de alta a pedido”

2. Fundamentação legal e Análise:

Um dos dilemas enfrentados na prática clínica diária dos profissionais de saúde, principalmente pelos profissionais médicos, se refere à conduta a ser adotada, do ponto de vista ético e jurídico, diante da manifestação da vontade por parte do paciente em solicitar alta hospitalar contra a indicação do médico assistente. Segundo o Conselho Federal de Medicina – CFM 2005, quando um paciente está internado em uma unidade hospitalar, é prerrogativa médica decidir acerca do melhor momento para concessão (ou não) da alta hospitalar, pois é o médico quem detém os conhecimentos técnicos e pode prever as consequências de sua atitude, dentro das circunstâncias normais esperadas. Assim, os médicos deparam-se, cotidianamente, com este dilema: respeitar a autonomia do paciente e conceder a alta hospitalar, mesmo sabendo que esta decisão poderá trazer prejuízos à saúde do paciente, ou recusar-se a atender ao pedido, mantendo o paciente internado mesmo contra sua vontade, tendo como norte o princípio da beneficência, uma vez que o direito à vida é indisponível e ao médico cabe zelar pela vida.

O termo, alta a pedido refere-se à alta hospitalar de um paciente solicitada por ele mesmo. Segundo a Secretaria de Assistência à Saúde, portaria nº 312, de 30 de abril de 2002, DO 83 de 2/5/02, alta a pedido é a saída do paciente do hospital sem autorização médica, porém com comunicação da saída ao setor em que o paciente estava internado, motivada pela decisão do paciente ou de seu responsável de encerrar a modalidade de assistência que vinha sendo prestada ao paciente. A alta a pedido é considerada sinônimo de desistência do tratamento, tendo em vista que, visando a melhor utilização dos recursos hospitalares, todo paciente que se encontra internado em hospital deve estar internado por alguma condição médica que exija tratamento ou observação hospitalar. Logo, se o paciente pede alta, ele está desistindo do tratamento proposto para a condição médica que motivou a internação.

 Segundo CLOTET 2006, o Brasil sempre teve forte tradição de uma medicina paternalista decorrente da preponderância da beneficência na ética médica tradicional, partindo do princípio de que, como o médico é detentor do conhecimento e tem interesse legítimo no bem-estar do paciente, é ele quem deve tomar a decisão, inexistindo a participação do paciente neste processo.

A prática paternalista continua, ainda hoje, como alicerce da postura ética não só do profissional médico, mas também verificada entre os demais profissionais da equipe multiprofissional. Existindo, porém, uma lacuna no que se refere ao livre arbítrio do paciente para decidir. Assim, a mudança de paradigma vem ocorrendo paulatinamente desde a segunda metade do século 20, tendo iniciado nos EUA e em países da Europa Ocidental, passando o paciente a participar ativamente das decisões acerca de seu tratamento. Teve como marco histórico o Patient’s Bill of Rights, de 1973, documento da Associação Americana de Hospitais no qual se dispunha que o paciente tem o direito de receber de seu médico a informação necessária para dar o consentimento informado antes do início de qualquer tratamento. (PITHAN, 2005).

No Brasil, no âmbito jurídico, já existem vários sinais indicativos da substituição do paternalismo pelo respeito à autonomia do paciente, que passa de sujeito passivo a sujeito ativo, conquistando o direito e o poder de tomar decisões sobre sua saúde e sua vida.

A alta a pedido é assegurada pelos princípios da autonomia e da liberdade que respaldam o direito do cliente de pedir a sua alta, estando fundamentada nas seguintes legislações:

Constituição Federal Brasileira: Art. 5º – que prevê o direito a liberdade (de decisão, de locomoção) do indivíduo.

Código Civil Brasileiro: Art. 15º – que determina que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Lei Orgânica da Saúde: Art. 7º – que determina que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: […] III – Preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral.

Ministério da Saúde: Portaria nº 675/GM de 30 de março de 2006, inciso V do 4º princípio – que aprova a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, onde afirma que “é direito do usuário o consentimento ou a recusa de forma livre, voluntária e esclarecida, depois de adequada informação, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo se isto acarretar risco à saúde pública”.

Código de Ética dos Profissionais Médicos:

Art. 13. É vedado ao médico deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença.

Art. 22. É vedado ao médico deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Art. 24. É vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

Art. 31. É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Art. 34. É vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Código de Ética dos profissionais de Enfermagem:

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS:

– O profissional de enfermagem atua na promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, com autonomia e em consonância com os preceitos éticos e legais.

– O profissional de enfermagem participa, como integrante da equipe de saúde, das ações que […], garantam […], a preservação da autonomia das pessoas […].

– O profissional de enfermagem respeita a vida, a dignidade e os direitos humanos, em todas as suas dimensões.

Art. 12. (Responsabilidades e Deveres): Assegurar à pessoa, família e coletividade assistência de Enfermagem livre de danos decorrentes de imperícia, negligência ou imprudência.

Art. 17 – (Responsabilidades e Deveres): Prestar adequadas informações à pessoa, família e coletividade a respeito dos direitos, riscos, benefícios e intercorrências acerca da assistência de enfermagem.

Art. 18 – (Responsabilidades e Deveres): Respeitar, reconhecer e realizar ações que garantam o direito da pessoa ou de seu representante legal, de tomar decisões sobre sua saúde, tratamento, conforto e bem estar.

Art. 20 – (Responsabilidades e Deveres): Colaborar com a equipe de saúde no esclarecimento da pessoa, família e coletividade a respeito dos direitos, riscos, benefícios e intercorrências acerca de seu estado de saúde e tratamento.

Art. 27 – (Proibições): Executar ou participar da assistência à saúde sem o consentimento da pessoa ou de seu representante legal, exceto em iminente risco de morte.

Art. 56 – (Proibições): Executar e determinar a execução de atos contrários ao Código de Ética e às demais normas que regulam o exercício da Enfermagem.

No entanto, e apesar de toda legislação que respalda o direito da autonomia do usuário do serviço de saúde, a gravidade e a iminência de perigo de vida do paciente ainda condicionam a aceitação ou a recusa de uma alta a pedido. Assim, outra discussão que se faz acerca desse tipo de alta, está na capacidade civil do cliente/paciente ou seus representantes legais (pais, tutores ou guardiões) para decidir com competência. A terminologia competência é aqui utilizada no sentido da capacidade do paciente de se autodeterminar, ou seja, tomar decisões por si próprio quanto ao tratamento a ser realizado.

Neste contexto, muitas instituições de saúde têm adotado como prática a elaboração de norma denominada “Termo de Alta a Pedido”. Este documento deverá ser integrado às normas administrativas da unidade de saúde, ser elaborado com a participação de todos os profissionais de saúde envolvidos com a assistência direta ao paciente, abordado os seguintes aspectos:

Disposições gerais que, entre outros aspectos, apresenta:

a. Os direitos do cliente de receber esclarecimentos quanto ao seu diagnóstico, suas condições clínicas, as possibilidades terapêuticas, as consequências decorrentes da interrupção da assistência com a especificação dos possíveis riscos e danos;

b. As responsabilidades do cliente ou do solicitante da alta a pedido;

c. As responsabilidades do profissional responsável pelo preenchimento;

d. As responsabilidades, além do médico, dos outros profissionais de saúde acerca das orientações do cliente ou do solicitante da alta a pedido.

e. Os procedimentos administrativos referentes à alta a pedido.

  1. O registro do médico assistente e do enfermeiro responsável, em prontuário do paciente, acerca dos esclarecimentos prestados ao cliente.
  2. A declaração do cliente, ou do responsável legal, de ter sido devidamente esclarecido acerca da situação de saúde.

 

3. Conclusão:

Considerando o exposto, fica claro que o tema “alta a pedido” ainda carece de espaços para discussões e definições, uma vez que envolve várias nuances éticas e legais conflitantes, a exemplo do conflito entre os princípios bioéticos da autonomia e da beneficência. No entanto, e considerando todo esse contexto, concluímos que a alta a pedido constitui-se um direito do cliente ou do seu responsável legal, quando não se tratar de iminente risco de vida, sendo competência dos profissionais da equipe multiprofissional analisar e esclarecer o paciente/cliente sobre os riscos associados a tal decisão, realizando posteriormente os encaminhamentos que se fizerem necessários, conforme diretrizes e políticas institucionais, respeitando a autonomia do paciente e dos familiares, sem perder de vista o princípio da beneficência e da segurança de todos os envolvidos no processo.

Recomendamos a elaboração e adoção das normas administrativas e assistenciais frente à solicitação de “Alta a Pedido”, considerando a legislação específica e as atribuições/responsabilidades de cada membro da equipe, assim como a descrição passo a passo para a execução e registro dos procedimentos a serem realizados, com posterior validação pelos respectivos responsáveis técnicos e imediata capacitação de todos os envolvidos no processo.

 

É o nosso parecer.

 

Salvador, 20 de junho de 2017

 

Enf.ª Ana Paula Paes de Oliveira – COREN-BA 113.564-ENF

Enf.ª Mara Lucia de Paula Souza – COREN-BA 61.432-ENF

Enf.ª Maria Jacinta Pereira Veloso – COREN-BA 67.976-ENF

Enf.ª Sirlei Santana de Jesus Brito – COREN-BA 47.858-ENF

4. Referências:

a. BRASIL. Lei nº 7.498 de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o Exercício profissional da Enfermagem, e dá outras providências. Disponível em: http://www.portalcofen.gov.br

b. BRASIL. Decreto nº 94.406 de 08 de junho de 1987 que regulamenta a Lei nº 7.498 de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o Exercício profissional da Enfermagem, e dá outras providências. Disponível em: http://www.portalcofen.gov.br

c. BRASIL. Resolução COFEN nº 311 de 2007, que aprova a reformulação do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Disponível em: http://www.portalcofen.gov.br

d. BRASIL. Resolução CFM nº 1931 de 2009, que dispõe sobre o Código de ética Médica. Disponível em: http://www.portalcfm.gov.br

e. Organização Mundial da Saúde. Glossary of Terms for Community Health Care and Services for Older Persons. 2004. Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/wkc/2004/WHO_WKC_Tech.Ser._04.2.pdf. Acesso em: 22.12.09.

f. LAUFFER, Jaciara. Alta a Pedido e suas Implicações Médico Legais. Disponível em: http://www.pucrs.br/direito/graduacao/tc/tccII/trabalhos2007_1/jaciara_lauffe r.pdf. Acesso em 05 jan 2010.

g. CLOTET, Joaquim. Bioética: Uma Aproximação. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p. 69.

h. MUÑOZ, Daniel Romero; FORTES, Paulo Antônio Carvalho. O Princípio da Autonomia e o Consentimento Livre e Esclarecido. In: COSTA, Sérgio I. Ferrreira; OSELKA, Gabriel; GARRAFA, Volnei (Coord.). Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 53-54.

i. PITHAN, Lívia. O Consentimento Informado como Exigência Ética e Jurídica. In: CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria; OLIVEIRA, Marília Gerhardti de (Coord.). Bioética: Uma Visão Panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 136.

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